A nuance entre Pseudociência e Protociência

 


O Contrato da Ficção Científica: A Meia Verdade como Hipótese

A situação em que a meia-verdade de Júlio Verne não é uma "falsa mentira" é um dos exemplos mais eloquentes de como a ficção científica e a especulação criativa operam numa esfera separada da desonestidade intelectual.

A meia-verdade de Júlio Verne – ou de qualquer ficção científica visionária – reside em sua natureza de hipótese plausível, mas não verificada.

  1. Não há Intenção de Fraude Factual: Quando Verne escreveu sobre a viagem à Lua (Da Terra à Lua) ou o submarino elétrico Nautilus (Vinte Mil Léguas Submarinas), ele não estava se apresentando como cientista ou engenheiro que garantia a viabilidade daquelas tecnologias no presente. O leitor estabelecia um "contrato de suspensão de descrença"; aceitava temporariamente as premissas da história.

    • Contraste com a Falsa Mentira: A pseudociência, ao contrário, vende a meia-verdade como um fato estabelecido ou uma verdade oculta que o sistema (a ciência legítima) estaria propositalmente ignorando. A intenção é enganar sobre a natureza da evidência para obter lucro ou seguidores.

  2. O Foco está na Exploração Conceitual: Verne usou os fragmentos de verdade (a existência de eletricidade, os avanços em balística, a física das pressões) para construir cenários que exploravam o potencial da ciência, não a sua realidade atual. A meia-verdade aqui é a teoria imaginada que leva a uma consequência ficcional.

    • Exaltação da Ideia: A ficção científica, especialmente a de Verne, celebra a capacidade humana de inovar. Suas "mentiras" sobre as viagens espaciais não eram sobre o que era possível naquele momento, mas sobre o que a razão e o engenho humano poderiam alcançar no futuro. Era uma verdade potencial, não uma falsidade presente.

  3. A Ficção como Propulsor da Realidade: A meia-verdade de Verne se torna honrada, e não falsa mentira, quando a sua especulação inspira os cientistas e engenheiros do futuro.

    • A "Profecia" Cumpriuda: O submarino, a viagem à Lua (com detalhes impressionantemente similares aos da Apollo), os carros autônomos e os tablets (previstos em outras obras de ficção científica) surgiram, em parte, porque a ficção agiu como um protótipo cultural. A "mentira" de Verne serviu como objetivo utópico que a ciência real perseguiu e, eventualmente, alcançou.

Neste caso, a "meia-verdade" da ficção científica é mais bem definida como especulação plausível ou antecipação tecnológica. Ela não é uma mentira porque não engana sobre o presente, mas sim desafia a realidade com o que poderia ser. É a celebração do poder de imaginar como o primeiro passo para o poder de realizar.

A ideia de que "a pseudociência se torna realidade" é, na maioria das vezes, uma confusão entre três conceitos relacionados:

  1. Pseudociência

  2. Protociência

  3. Ciência Legítima

1. A Confusão com a Protociência

O caso mais comum e legítimo de algo que era visto com ceticismo se tornando realidade é quando uma ideia passa do status de Protociência para Ciência Legítima.

  • Protociência: É uma área de pesquisa ou uma hipótese que, no momento, carece de evidências e metodologias suficientes para ser totalmente aceita pela comunidade científica, mas que segue o método científico. Ela está aberta à falsificação, busca evidências e pode ser testada.

    • Exemplos Históricos:

      • Tectônica de Placas (Deriva Continental): A ideia original de Alfred Wegener (início do século XX) de que os continentes se moviam foi inicialmente ridicularizada por falta de um mecanismo físico plausível para explicar o movimento. Era considerada uma hipótese marginal. Anos mais tarde, com a descoberta de evidências geológicas no fundo do mar, a hipótese se transformou na teoria central e aceita da Tectônica de Placas. A ideia não era pseudociência, era protociência que se tornou ciência.

2. Por Que a Pseudociência Rara Vez se Torna Realidade

A Pseudociência é fundamentalmente diferente da Protociência porque viola os princípios básicos do método científico. Ela é:

  • Imune à Falsificação: Não pode ser refutada por evidências. Se um teste falha, o proponente culpa o teste, a energia do ambiente, ou a má vontade do cético, em vez de reformular a teoria.

  • Baseada em Evidências Anedóticas: Em vez de estudos controlados, confia em testemunhos pessoais e histórias isoladas.

  • Estática e Dogmática: Não evolui com novas descobertas, mantendo-se ligada a conceitos rígidos (ex: astrologia, homeopatia clássica).

Quando uma ideia que tem aparência de pseudociência acaba se comprovando, é geralmente porque:

CenárioDescriçãoExemplo Ilustrativo
Coincidência com a ProtociênciaA ideia original foi agrupada injustamente com a pseudociência porque a comunidade científica a achava estranha ou prematura, mas ela estava, secretamente, seguindo o método científico (ou estava prestes a fazê-lo).A pesquisa sobre a conexão entre o cérebro e o sistema imunológico foi vista com ceticismo por muito tempo (beirando a "medicina alternativa") até que a Psiconeuroimunologia se estabeleceu com mecanismos celulares e hormonais verificáveis.
Mecanismo Subjacente DescobertoUma prática tradicional vista como pseudociência funciona devido a um princípio ativo real, que só é descoberto e isolado pela ciência mais tarde. O que era pseudociência era a explicação mística ou não verificável, não o efeito.A Fitoterapia (uso de plantas medicinais) era frequentemente vista com ceticismo. No entanto, a ciência moderna isolou componentes ativos de plantas (ex: a artemisinina da artemísia para malária) e os validou através de ensaios clínicos, transformando a "cura popular" em Farmacologia.
"Acerto" CasualA afirmação pseudocientífica é tão vaga ou generalista que acaba se aplicando a algo que acontece mais tarde, mas sem relação causal ou metodológica. Isso é um viés de confirmação.Um astrólogo pode prever que "o mês será de grandes mudanças para a economia". Uma crise financeira ocorre. O acerto é casual e a "previsão" não pode ser replicada ou testada com metodologia.

Conclusão

No caso de Júlio Verne, a ficção científica não era pseudociência, era especulação tecnológica inspirada em ciência legítima. O seu erro não era metodológico, mas apenas cronológico.

A pseudociência, por definição, resiste ao teste da realidade. Se uma ideia antes chamada de pseudociência for validada e se tornar "realidade", ela parou de ser pseudociência no momento em que adotou a metodologia científica, apresentou evidências reprodutíveis e se submeteu à falsificação. Em essência, ela morreu como pseudociência para renascer como ciência.

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